Lili | Manuela Costa (GO)

terça-feira, janeiro 03, 2017



Liliane despertara bem cedo com a camiseta empapada de suor. Dormira mal com o calor de dezembro e mal conseguira se manter na cama. Olhou em volta, a cabeça pesada, tentando lembrar da noite anterior. Luis dormia aos roncos ao seu lado, o corpo espalhado quase jogando-a ao chão. Ela tirou a camiseta úmida, jogou uma água no rosto e saiu para o jardim. A casa era ampla e recebia muita luz pelas aberturas de vidro que cobriam quase todas as paredes. O jardim, um espaço quase tão grande quanto o sobrado, era composto de um gramado com árvores de médio porte plantadas junto aos muros, e um orquidário elevado cujo acesso se dava por uma escada estreita de concreto. Lá em cima, vasos de todos os tamanhos guardavam inúmeras plantas espalhadas pelo chão e pendendo de vigas, de onde choviam ramos de trepadeira. Ela se sentou, nua, sobre um banco suspenso de madeira que balançava tranquilamente – Luis dormia profundamente e ela poderia ficar à vontade. Liliane gostava de sentir o Sol vasculhando cada centímetro de sua pele, esquentando seus seios redondos e pequenos, e fazendo seus cabelos louros dourar num brilho translúcido. Ela fechou os olhos e observou a cor alaranjada de suas pálpebras sob a luz forte da manhã. Faltavam poucos dias para acabar o ano, mas ela não se importava. A passagem do tempo não seria interrompida, o ciclo se fechava somente para começar de novo, como antes, um segundo depois. Ou dez, como gostamos de pensar. A passagem de ano é burocrática, entediante e regada de um líquido sem graça.

Naquele momento, no entanto, o tempo parecia parado. Não havia uma brisa sequer para assinalar a passagem dos minutos, o Sol crescia lentamente sobre Liliane que acabara cochilando de tédio e ressaca, e o domingo se arrastava, discreto. Luis comprara, noite passada, duas garrafas de um vinho tinto que ela arrebatara sozinha enquanto esperava o jantar. Liliane ficara tão bêbada que dormira antes de comer, e fora ele que tirara seus sapatos de salto, a meia-calça preta e o vestido. Tirou seus brincos, o anel de noivado, e os grampos que prendiam o cabelo fino num coque alto que deixava seu colo exposto. Luis tinha escolhido uma camiseta enorme e velha como pijama e a colocara para dormir, aninhando-a em seus braços. Esses pequenos gestos pareciam coisa de namorado, o que a deixava confusa, mas ela e Luis eram amigos há tempo demais, e o colo que ele oferecia de quando em vez bastava para amenizar a confusão que criava. Ela se levantou para beber água tentando ignorar a dor no fundo da cabeça que antecipava uma enxaqueca daquelas. Talvez devesse voltar para a cama, mas o dia estava radiante, bonito mesmo, então ela desenrolou a mangueira do jardim e começou a regar as plantas, dando atenção especial para as azaleias que plantara na semana anterior. Conforme Liliane fazia chover pela grama, lançando a água cada vez mais longe até atingir os muros, a elasticidade da mangueira arrastava pensamentos ruins que ameaçavam consumi-la, como a enxaqueca. Cuidou das orquídeas cujas flores tinham secado ao longo das últimas semanas, afofou a terra na horta de manjericão e colheu algumas cebolinhas que estavam bem maduras, até que seu corpo estava todo suado, vermelho e chapinhado de lama. Mergulhou os dedos na terra fofa, como se pudesse semear seus pensamentos através dos poros naturais do solo. Buracos irregulares e permeáveis deixando passar qualquer ideia frívola ou frutífera que assediava sua tranquilidade.

Jogada na terra, nua e exposta, Liliane tinha a impressão de que estava segura. Mas só isto bastava para que ela começasse a ficar nervosa. Num clique, recolheu as mãos sobre a barriga, acariciando o dedo anelar em busca do anel. Um momento de pânico paralisou seus membros até que Liliane recordou tê-lo visto à cabeceira da cama - seus demônios estavam seguros. A atenção com a qual ela cuidara do jardim a energizara e a fez se perguntar o que faria do resto de seu dia. Suas pernas se debatiam num movimento involuntário, um tique que a dominava quando seu corpo pressentia a onda de ansiedade, e ela sentiu vontade de sair correndo até que ardessem seus pulmões, os músculos do corpo todo queimando. O cansaço físico era algo com que sonhava. Seu corpo frágil e magro era refém de uma mente acelerada que o mantinha inativo por horas sem fim, as tarefas que se sucediam manipuladas por seus dedos e só. Ela não era o tipo de pessoa que se contentava com o ócio, sua cabeça precisava produzir, manter o fluxo de suas ideias vivo e bem alimentado, preparado para enfrentar inflexibilidade das minúcias cotidianas – cada pequena ação devia ter sentido. Mas esse esforço de manter a luz acesa, mesmo quando o Sol banhava todos os cômodos, bloqueava às vezes seu corpo, levando-o a um transe doentio de falta de movimento quando sua cabeça estava prestes a fundir. Quando Liliane achou que sua cabeça estava prestes a ceder à enxaqueca, uma sombra lhe tapou o Sol fazendo com que ela se cegasse por um tempo.

“Você ainda quer ir ao cemitério? ” – Ele lhe estendeu uma toalha branca.
“Não”
“Tem certeza, Lili? ”
“Não. Mas ele está morto, Luis. Ele está morto há tempo demais, e eu não” – Liliane se levantou com alguma dificuldade e desapareceu dentro da casa. Voltou minutos depois brincando com o anel entre os dedos imundos. Ela o entregou para Luis e se abaixou em cócoras, arranhando a terra com as mãos cansadas. “Ele está morto e devemos enterra-lo” Luis soltou o anel dentro da pequena cova que Liliane cobriu, depositando flores secas sobre o pequeno montinho que se formou.

Manuela é escritora e estudante de Comunicação da UnB. Muda constantemente de opinião, devora livros e pensa o mundo através da arte e da comunicação. Para ela, linguagem é tudo. Autora do conto que intitula a antologia As dores de Josefa, publicado pelo Selo Naduk da Nega Lilu Editora, em 2016.

Foto: Manuela Costa

Canais da Manu:

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